Militares permanecerão no poder com Bolsonaro, Lula ou Moro

(Resende – RJ, 29/11/2019) Presidente Jair Bolsonaro recebe Honras Militares ao desembarcar na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Créditos: Marcos Corrêa/PR

* Artigo publicado originalmente na coluna “Entendendo Bolsonaro” do UOL.
 
Os militares vieram para ficar, seja qual for o governo. Desde a ditadura militar não se via tantos fardados ocupando cargos na máquina pública federal e nada indica que eles sairão dela caso Jair Bolsonaro seja derrotado nas eleições de 2022. Já há um tempo a imprensa vem mostrando tentativas de aproximação entre a oposição ao governo e militares, vindas não apenas da chamada centro-direita e da direita, mas também da centro-esquerda petista.
 
Em entrevista ao UOL, figuras ligadas ao ex-presidente Lula confessaram que ele repete à exaustão ter sido o chefe de Estado que mais atendeu à categoria e que os mais de seis mil cargos civis ocupados por militares no governo Bolsonaro não serão esvaziados de uma hora para outra, mas de forma lenta.
 
Segundo estudiosos dos militares, como o coronel da reserva Marcelo Pimentel, já entrevistado por esta coluna, a categoria utilizou Bolsonaro como um “cavalo de troia” para chegar ao poder e nele pretende permanecer, seja qual for a gestão. Em entrevista, o antropólogo Piero Leirner, especialista no universo militar, afirmou que um consórcio de oficiais dos mais altos graus hierárquicos do Exército na ativa e reserva estaria organizando uma reestruturação do Estado com objetivos a longo prazo a partir da ocupação de espaços na máquina pública.
 

“É como se fosse um ‘Pentágono à brasileira’. Uma estrutura de poder infiltrada em espaços do Estado, não só do Executivo, que tem o controle dos fluxos políticos e de capital que estão envolvidos na gerência da máquina estatal”, afirma Leirner ao Poder360.

Para esses especialistas, cumprida a missão de levar as Forças Armadas ao poder, Bolsonaro seria dispensável para os militares. Segundo esse raciocínio, a pecha de “incendiário inconsequente” atribuída ao presidente interessa à caserna, já que abre espaço para a atuação da categoria tanto pela “situação”, com o vice-presidente e general Hamilton Mourão, como pela “oposição”, com o ex-ministro e general Carlos Alberto Santos Cruz.]
 
Recentemente, algumas reportagens têm indicado que essa “ala de oposição” dos militares estaria começando a manifestar interesse por uma opção de terceira via que rompa com a “polarização”. Ao Estadão, Santos Cruz afirmou ser preciso “afastar as duas opções que já tiveram sua oportunidade” e disse ser necessário um “outro governante que restaure o respeito, a honestidade, o combate à corrupção e a união nacional”.
 
O general, inclusive, declarou apoio à candidatura do ex-juiz Sergio Moro à Presidência, o qual, segundo reportagem do Estadão, seria a opção “dos sonhos” dos militares. Moro chegou a receber condecorações do Exército como a Ordem do Mérito Militar, mais elevada distinção honorífica da instituição, e a Medalha do Pacificador, honraria que homenageia serviços relevantes prestados ao país.
 

Raízes históricas do intervencionismo militar

O protagonismo militar na política remonta aos tempos imperiais. Desde o fim do século XIX, os fardados participaram das principais mudanças políticas da sociedade brasileira. A própria Proclamação da República, fruto de um golpe militar, representa o marco histórico inicial deste fenômeno, afirma o professor Antonio Jorge Ramalho da Rocha, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), em seu artigo “Bajo el manto de la ambigüedad: los militares y la gobernabilidad en la transición democrática brasileña”.
 
De acordo com Ramalho, “neste processo, o Exército criou a abstração de que poderia substituir o imperador (que incorporava um quarto poder, conforme a Constituição de 1824), atribuindo às Forças Armadas o papel de arbitrar os conflitos entre os poderes constituídos”.
 
Esse processo de interferência na vida política nacional continua após 1889 de maneira constante, tendo como exemplos o “tenentismo” na década de 20, que deu origem à Revolução de 1930; o autogolpe de Getúlio Vargas em 1937; e o golpe militar de 1964. Isso ocorre porque, segundo o especialista, “os militares do Exército desenvolveram uma autoimagem que os apresenta como uma espécie de reserva moral da nação, prontos para intervir sempre que necessário para promover a ordem social e garantir o progresso econômico, geralmente em associação com as elites civis”.
 
Após 1985, com o fim da ditadura, o Brasil vivenciou um período de relativo distanciamento dos militares da política, que chega ao fim com a eleição de Dilma Rousseff à Presidência, uma ex-guerrilheira que havia combatido o regime militar, e principalmente com a criação da Comissão Nacional da Verdade em seu governo, que apurou violações a direitos humanos realizadas pelo governo autoritário entre 1964 e 1985 e produziu relatório responsabilizando chefes do Exército e parentes por crimes cometidos no período.
 
Portanto, durante toda a história brasileira do Império até o presente, o principal foco das instituições militares nacionais tem sido o combate a movimentos separatistas e “subversivos”. Em apenas dois momentos (Guerra do Paraguai e Segunda Guerra Mundial) as Forças Armadas participaram de conflitos externos. Dessa forma, a “salvação da nação” de seus “inimigos internos” constituiu-se como uma espécie de “vocação histórica” dos militares.
 
Com o retorno da inserção militar direta na política, especialistas afirmam que estamos presenciando a atuação de um verdadeiro “partido militar”, um grupo coeso, com hierarquia, disciplina e projeto de poder dirigido principalmente por generais formados na AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras) na década de 70, geração na qual se formou Bolsonaro.
 
Para esses estudiosos, como o coronel Pimentel, é esse “partido” quem dá direção e intensidade a dois processos que se retroalimentam: a politização das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e a militarização da política e da sociedade, que se dá através da participação de militares na política e em cargos da administração pública. “Partido” este cuja ideologia principal, o “anticomunismo”, foi formada nas décadas de 20 e 30 do século XX, especialmente com a eclosão da Intentona Comunista, quando o fantasma do comunismo passa a perturbar a categoria, que o combate até hoje por meio de um “antiesquerdismo” genérico.
 
Não é, portanto, apenas com Olavo de Carvalho ou com a sua chamada “ala ideológica” que o governo Bolsonaro adquire seus traços reacionários e obscurantistas, mas também com a dita “ala militar” ou “racional”, divisão esta que serve aos interesses dos militares, que desejam serem tratados como os “adultos na sala” que controlam a “criança” Bolsonaro, fazendo-o radicalizar cada vez mais seu discurso e atitudes para serem tratados como os “moderados” que se livrarão da “criatura” alimentada por eles.
 

Arapongagem militar

Não é apenas com a sua participação direta na política com cargos no governo federal e Congresso que os militares obtêm poder de influência. Especialistas em temas militares alegam que é, também, graças à atuação dos órgãos de inteligência das Forças Armadas que a categoria consegue influenciar os rumos do país.
 
“É sobejamente sabido que, como os órgãos de inteligência das três Forças atuam sem nenhuma supervisão de qualquer tipo (supervisão por parte da cidadania, por parte do Legislativo), são famosos em Brasília os supostos dossiês que os órgãos de inteligência das Forças Armadas teriam e poderiam ventilar de forma inominada, com relação à vida privada e à vida pública de muitos políticos”, afirmou o professor da Unesp Alexandre Fuccille, mestre e doutor em ciência política, em entrevista ao Nexo.
 
Para o especialista, há um receio quanto à atuação pouco republicana dos serviços de inteligência militares. “Estou falando da inteligência das Forças Armadas, que seguem bisbilhotando movimentos sociais e outras atividades políticas, com base na ideia de se preparar para a garantia da lei e da ordem”, diz ele.
 
“A inteligência nunca para. O Exército monitora os movimentos sociais desde sempre com a alegação de que podem vir a constituir forças internas passíveis de uso por países estrangeiros com intenções de gerar disputas internas. Isso é ‘normal'”, afirma o coronel Pimentel a esta coluna.
 
Um exemplo de atuação da inteligência militar está na reportagem do Correio Braziliense, que revelou que o Exército monitorou cidadãos, parlamentares, jornalistas e influenciadores digitais para identificar e neutralizar detratores do Projeto de Lei 1645/2019, que reestruturou a carreira militar. Os documentos obtidos pelo jornal afirmam que era preciso “ganhar a narrativa” contra praças e partidos de oposição.
 
Os relatórios, elaborados pela Divisão de Produção e Divulgação do Centro de Comunicação Social do Exército (Ccomsex), dividem os monitorados em sete grupos: Grupo Cidadão; Grupo Político; Grupo Mídia e Grupo Blog; Forças Armadas; Forças Auxiliares; Entidades Religiosas; e Grupo Associações de Militares. Além de assumir posicionamentos políticos em temas estranhos à missão das Forças Armadas, como a defesa da política econômica do governo Bolsonaro, os documentos revelam avaliações politizadas, com a utilização de termos como “partidos de oposição”, “causa lulista” e “ganhar a narrativa”.
 
Para o coronel Pimentel, essa matéria seria um exemplo de “vazamento” feito pelo Exército para a imprensa para “avisar” que estão monitorando e espionando agentes políticos para a fabricação de dossiês. Em trecho de postagem nas redes sociais, ele afirma: “Vestida de reportagem ‘exclusiva’ (‘vazamento’ de documentos que mostram ‘MONITORAMENTO’ de redes sociais para pautas corporativas e de interesse específico do ‘Exército’), fica o aviso/ameaça de que o ‘Exército’ (entenda-se órgãos de inteligência militarizados como a ABIN) que ‘MONITORA’ também pode ESPIONAR. Ideia-força: cuidado com ‘DOSSIÊ’!”.
 
Desde a posse de Bolsonaro, em 2019, onze órgãos públicos foram incluídos no Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), entidade composta por 48 órgãos públicos criada juntamente com a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), há 21 anos, para compartilhamento de dados de inteligência.
 
Já foi revelado por veículos de imprensa que a Abin, subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI) liderado pelo general Augusto Heleno, e comandada pelo delegado Alexandre Ramagem, amigo da família Bolsonaro, foi utilizada para enviar relatórios clandestinos com a finalidade de orientar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), acusado da prática de desvio de dinheiro.
 
Reportagem da revista Crusoé revela que, no atual governo, órgãos oficiais de informação e inteligência registram investimentos recordes e o setor vem sendo significativamente incrementado, tanto do ponto de vista operacional como financeiro, com ferramentas de alta tecnologia, como satélites de vigilância que produzem imagens de altíssima resolução que podem ser usados para monitorar pessoas e empresas, e softwares invasivos que permitem interceptar ligações, mensagens de texto e obter dados armazenados em plataformas como WhatsApp, Google e Facebook.
 
A Abin, responsável por fornecer ao presidente da República informações estratégicas para a proteção do Estado, tem sido prestigiada pelo governo federal desde a entrada de Ramagem no seu comando. De acordo com a Crusoé, durante a pandemia em 2020, o órgão gastou R$ 112,5 milhões em “ações de inteligência”, o que significa um crescimento de 32% em relação aos valores de 2019.
 
Ainda no ano passado, a agência também movimentou R$ 8,6 milhões com “serviços de caráter secreto ou reservado” e mais R$ 18 milhões com a aquisição de “equipamento e material sigiloso”, o que inclui contratos com empresas secretas estrangeiras, informa a revista.
 
Segundo a matéria, os serviços de inteligência das Forças Armadas também têm sido bastante demandados pelo governo. O Ministério da Defesa registrou empenhos de R$ 10,4 milhões em “ações de caráter sigiloso”, o maior gasto com esse tipo específico de despesa desde 2014, e, apenas em 2020, o Centro de Inteligência do Exército empenhou R$ 26,6 milhões, enquanto o da Marinha assinou despesas na ordem de R$ 2,5 milhões.
 
A utilização desse aparato de inteligência seria inclusive uma das razões apontadas por especialistas para que a CPI da Covid tivesse poupado militares de maiores investigações pela má condução na gestão da pandemia, embora o Ministério da Saúde tenha sido comandado por eles durante nove meses em que dezenas de fardados da ativa e da reserva ocuparam cargos de relevância na pasta. Dentre as ações do Exército que não foram alvo de esclarecimento pela comissão está a produção de cloroquina mesmo após a comunidade científica ter atestado a ineficácia do remédio para o tratamento da Covid-19.
 
O retorno da presença direta dos militares na vida política brasileira, integrando governos e cargos legislativos, é, portanto, mais um indício da imaturidade política e institucional da sociedade brasileira, ou de pelo menos boa parte dela, que parece ter comprado a ideia veiculada nos quartéis de que a categoria representaria a “salvação da nação”. É preciso comunicar, com clareza, uma verdade histórica: todos os momentos da história nacional em que as Forças Armadas estiveram no poder foram marcados pela instabilidade e pelo autoritarismo, quando não pela concretização de fato de regimes de exceção. Acende-se mais um perigoso sinal de alerta para a democracia brasileira.